terça-feira, 23 de agosto de 2011

Evangeline.

Um borrão. Quando eu olho para o monitor só vejo um borrão com um esboço de olhos, nariz e boca. Estão dizendo que esse borrão é meu filho.
Não sei se ele será ruivo ou moreno, se puxará as nossas manias ou terá as dele. Não sei se será tímido como eu ou um conquistador como o pai. Eu só quero que ele nasça perfeito. Cinco dedos em cada mão, uma visão perfeita, uma audição perfeita e um choro que preencha todo o vazio dessa casa. Eu só quero que ele ande, ou melhor, corra, por todo lado e peça uma casa na árvore de Natal, assim ele poderá subir nos galhos e se esconder no alto sempre que estiver perto de levar uma bronca.
Eu quero que ele namore bastante também e me conte tudo. Vou engolir meus ciumes e torcer para que a garota faça por merecer o meu filho. Eu quero que ele encontre um amor como eu encontrei em seu pai, e se entregue. Leve flores caso a menina goste, seja romântico e diga "eu te amo" só para vê-la enrubescer e sorrir.
Eu espero que ele seja médico ou então professor, advogado, jogador de futebol, arquiteto, qualquer profissão que ele escolher. Eu espero que ele sonhe e consiga alcançar todos os seus sonhos, por mais que não acreditem nele. Eu espero que ele me ame, tanto quanto eu o amo desde agora e o amarei depois. Eu espero que ele confie em mim e tenha sempre orgulho de dizer "essa é a minha mãe". Eu espero que eu consiga aprender a ser uma boa mãe.
Pode ser um borrão, mas é o meu borrão. O borrão que ainda não tem nome, mas já tem sobrenome. O borrão que eu não esperava, mas agora aguardo ansiosa.

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(nota: inspirado em Evangeline Green, do livro "Olhos de Menina" da autora Susan Fletcher)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Sexta de Música #17


A far l'amore in tutti
I modi, in tutti i luoghi in tutti i laghi in tutto il mondo
L'universo che ci insegue ma
Ormai siamo irraggiungibili…





Dimitri.

"Você pode ter qualquer um que quiser, Dimitri". Em toda a minha vida, disseram isso à mim, infelizmente não posso ter quem eu quero no momento.
Deus. Simplesmente não há palavra melhor para defini-lo. Os olhos cor de mel, a boca carnuda que guarda um sorriso que ilumina qualquer lugar, a pele bronzeada, o cabelo jogado para o lado...
Mas quando olho para a mão dele, percebo que está entrelaçada em outra mão, a mão de uma deusa, a mão da minha melhor amiga.
Desde então os dias têm sido assim, acordar de um sonho perfeito, em que a mão dele entrelaça a minha, em que a boca dele beija a minha. Todos os dias têm sido assim, acordar de um sonho perfeito e perceber que a vida não é como o sonho e a mão dele entrelaça outra mão, a boca beija outra boca, mas nunca a minha.
Por um momento nos olhamos nos olhos e eu sinto que ele sabe, que ele entende. E por um momento acredito que ele largará o violão e virá de encontro a mim e sem mais delongas dirá que está confuso e que talvez esteja apaixonado por mim. Mas ao invés disso ele desvia o olhar pra o violão e recomeça outra música, sem vir até mim, sem estar confuso, sem a possibilidade de estar apaixonado.
Me afasto mais e fico a olhar de longe, admirando aqueles olhos cor de mel, que sorriem. Sorriem para ela e provavelmente por ela.
Concordo com o resto do mundo, eles fazem um belo casal, eles se completam. E eu sou só um intruso. Um intruso que na verdade nunca entrou, que na verdade só ficava assim... de longe, admirando.
Em uma outra vida talvez? Talvez...
(mas nos meus sonhos eu sei que posso mais.)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Quinta de Poesia #17

Fanatismo

Minhálma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és se quer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio do Fim!..."

Florbela Espanca

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sexta de Música #16

Sei que a hora é dela
E ninguém mais tem
O dever de se importar
Mas nessa fase
A gente perde


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quinta de Poesia #16

"É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência".

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cecília.

"Querida irmã,
a vida na cidade grande é dura. Não há cor. Há pecado por todo o lado, ninguém se respeita, ninguém se importa, ninguém se cumprimenta, todos são solitários.
Eu me pergunto aonde está a música, mas não há. Eu me pergunto aonde está a inocência, mas ela só é encontrada em quem acaba de nascer.
É difícil, irmã, para uma garota do interior se acostumar com a cidade. Eu sinto sua falta. Eu sinto falta da pequena igreja, da conversa na praça, de deixar a porta aberta, das pessoas sem malícia. Mas principalmente, eu sinto falta do céu e das estrelas. Os prédios me impedem de ver o céu, o cinza e a poluição impedem que as estrelas apareçam.
Sabe, acho que desaprendi a ser feliz aqui na cidade. É mais fácil me misturar ao humor sórdido e cinza daqui do que sorrir e assumir uma posição feliz e colorida.
As pessoas repugnam a cor. Isso me assusta.
Não há futuro, irmã. Não há salvação para essas pessoas ou para essa cidade.
Desculpe irmã, mas depois de ver o mundo como ele realmente o é, não vejo motivos para continuar aqui.
Desculpe irmã, mas essa será a última vez que terá noticias de mim, pois eu pecarei. Pecarei em uma forma de me encontrar com Ele e me livrar dessa imundice de mundo.
Por favor, não chore com minha partida, um dia nos encontraremos e em um lugar muito melhor.
Com amor,
Cecília."

E a cidade se calou. Houve um longo silêncio entre uma onda e outra, enquanto Cecília caía. Mas ela estava certa, ninguém se importava. A cidade voltava para os seus barulhos, a sua falta de cor e os seus pecados, enquanto Cecília ia de encontro à sua felicidade.